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Anne Bacelar I Cléa Almeida I Graziela Santos I

Entre desafios e potencialidades: uma comunidade singular


Por Verusa Pinho

Rodeada de serras majestosas,

dos Payayá herdamos Jacobina,

a mais linda terra entre as formosas,

na encosta da Chapada Diamantina.

Trecho do Hino à Jacobina - Doracy Lemos

Situada na região nordeste da Bahia, extremo norte da Chapada Diamantina, a cerca de 330 km da capital, Jacobina está contornada por serras, grutas, rios e cachoeiras, destacando-se, ainda, do ponto de vista cultural, com manifestações tradicionais e artísticas peculiares. Sua história está diretamente ligada à atividade mineradora, que gerou processos migratórios para a região e lhe rendeu o codinome Cidade do Ouro.

Apresentação Cultural durante a Caminhada Ecológica do Brito - Por Verusa Pinho

Dentre os bairros mais antigos do município, está a Bananeira, que se desenvolveu longe do núcleo dos senhorios. Jornais históricos como O Lidador, referiam-se ao lugar, na década de 1930, como “o distante sítio da Bananeira”, onde atualmente ainda é possível avistar copas das plantas que dão vida ao seu nome, mesclando o cenário urbano com o rural. O bairro já foi sede da primeira termelétrica de Jacobina, espaço hoje cedido ao Centro de Convivência Quilombo Erê.

É neste cantinho singular que natureza e cultura se encontram, de onde afloram expressões afro-brasileiras características, como a capoeira, e residem pontos turísticos famosos, a exemplo das Cachoeiras do Brito, Amores e Viúva. ​​

 

Situado na Serra da Bananeira, o pico do Jaraguá é o mais alto da cidade, com quase 500 metros de altura. No bairro, há moradores que captam água natural, diretamente da serra, enquanto outros utilizam o recurso através da rede de tratamento. Nas palavras de Seu Delson, 74, o ponto forte do lugar é a água. Ao que Pe. José pontua: “É abundante na chuva, mas precisamos armazenar”, demonstrando a preocupação ambiental com o desperdício desse recurso natural indispensável à vida.

 
Por Verusa Pinho

Com uma população majoritariamente negra, o cotidiano do bairro está marcado por contradições... Diante do estigma criado em torno da criminalidade, sobretudo, do tráfico de drogas e da violência infanto-juvenil, a Bananeira é sede de diferentes projetos sociais, dentre os quais se destaca a Casa Rebeca, espaço voltado para o acolhimento de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, existente há quase 20 anos na localidade.

 

Segundo dados da 24ª Companhia Independente da Polícia Militar, apenas 1% dos crimes contra o patrimônio, que abrangem transeuntes, estabelecimentos comerciais e veículos, ocorreu na Bananeira, de janeiro a outubro deste ano. Bairros como o centro chegam a 33%. Até mesmo os casos de homicídio são irrisórios. No entanto, de acordo com Cléa Almeida, muitos adolescentes que já passaram pelo projeto referido acima tiveram suas vidas ceifadas precocemente... Procurado pela nossa equipe, o Conselho Tutelar informou que não há dados específicos por bairro, apenas estatísticas em âmbito municipal.

 

O bairro: história, realidades e conflitos

Delson Araújo atualmente preside a Associação Afro-Brasileira Quilombo Erê e integra a Associação Comunitária da Grota do Brito. Ele relembra que o cenário antes era bem diferente. Na sua memória, Seu Delson, como prefere ser chamado, guarda recordações que remontam à década de 1970, época em que a Bananeira era apenas “um bairro carente da zona urbana”, onde a única atividade econômica, como conta, era o trabalho com o processamento de couro através de dois curtumes.

 

A instalação da usina termoelétrica foi um dos fatores que influenciou a expansão urbana em direção à Bananeira, instalada durante a era desenvolvimentista de JK, primeiro presidente em exercício a visitar o município, estando no bairro para a inauguração da referida obra.

 

Com o passar do tempo, o aumento populacional ocasionou a criação de escolas e igrejas. “Por volta de 1979, chegou um jovem na Paróquia de Santo Antônio, que começou a visitar os bairros periféricos da cidade. Ele criou uma comunidade católica, que cresceu e conseguiu reunir o povo. Tinha catequese, reuniões...”, afirma Seu Delson ao relatar sobre o trabalho de Josef Hehenberger, mais conhecido como Padre José.

Pe. José, Cléa Almeida e Seu Delson - Por Josy Almeida

Durante a década de 1970, ainda em meio à ditadura militar, foram criadas as pastorais de direitos humanos em diversas regiões do país, dentre elas, pastorais da terra, de idosos e da juventude. “De 1979 até 1985 vimos que o povo, as famílias e, principalmente, as crianças precisavam de uma assistência mais de perto”, diz Pe. José ao rememorar o início da formação das comissões diocesanas em Jacobina. Naquela época, a desnutrição infantil era uma agravante, que ainda persiste em boa parte do país em níveis menores (mais informações aqui).

Ainda no mesmo período, foi criada a Associação Comunitária Irmandade do Divino Espírito Santo (Acides), que hoje tem como sede a Casa de Repouso, situada no bairro em questão, onde também são oferecidos atendimentos à população no âmbito da prevenção e cura por meio da bioenergia. “Primeiramente, não de modo organizado, um grupo se prontificou a iniciar um trabalho de conscientização, sobretudo, a partir das pessoas que passavam fome. Alugamos pastos, terra e o povo começou a fazer hortas comunitárias. Era uma saída para problemas como o alcoolismo também”, descreve Pe. José. Anos mais tarde, a necessidade de organização,sobretudo, a partir da terra, provocou conflitos. Após ameaças, o pároco narra que, por proteção e contra a sua vontade, foi transferido do município, passando um tempo em São Paulo.

Pe. José - Por Igor Fagner

Por volta de 1990, surgiu o Diretório São José Operário e, poucos anos depois, a Paróquia São José Operário. Com a aquisição de terreno abandonado no bairro Serrinha, deu-se forma à Fundação Educativa Popular Padre Alfredo Haasler e José Assis dos Santos Reis (Feppahja)*, contribuindo para o retorno do Pe. José. É nesse contexto de amadurecimento da sociedade civil que o trabalho com crianças e adolescentes se intensifica na Bananeira e em outros bairros da cidade. Por meio das pastorais, eram realizados treinamentos e retiros. “Cada comunidade tinha suas lideranças, que se reuniam mensalmente, ao primeiro domingo do mês, no centro pastoral. O grupo era de aproximadamente 30 a 40 pessoas. Fazíamos reunião com a comunidade toda sobre a própria realidade e seus problemas, em seguida discutíamos o evangelho”, comenta Pe. José.

 

"A Feppahja surgiu através dos trabalhos dos operários e do sindicalismo. Em 1985, José Assis dos Santos Reis disse pra mim: 'Pe., precisamos fazer um centro sindical, o povo precisa ser educado, eles não vão resistir à Morro Velho nem a essas organizações novas'. Então, em 1990, compramos em 10 parcelas um lixão na subida da Serrinha. Foi um trabalho muito grande de voluntariado porque a gente não tinha dinheiro pra pagar uma empresa, né?! Então quem vai tomar conta agora? Não tinha ninguém, tudo desmantelado! Nos restou, para garantir o patrimônio, fazer uma fundação. O grande educador popular aqui da região era padre Alfredo, que criou uma rede de comunidade, de ajuda, rede de muitas frentes com as professoras paroquiais. Esse foi um trabalho que não devemos esquecer!”, narra Pe. José.

 

A questão étnico-racial e o Quilombo Erê

Badu e jovens músicos do bairro - Por Verusa Pinho

Em 2007, é fundada no bairro a Associação Afro-Brasileira Quilombo Erê, com a participação de jovens vinculados aos trabalhos da Paróquia São José do Operário, grupos de capoeira e dança afro, além de integrantes do projeto Puravida. “Antes de formar a associação, a gente já tinha participação na Pastoral Afro e da Consciência Negra da cidade. Fomos um dos primeiros grupos a lutar contra a discriminação racial! Acompanhávamos audiências e prestávamos orientação às vítimas”, relembra a professora de dança e integrante da associação, Edna Moreira. Dentre os objetivos do Quilombo Erê, está o intuito de promover a valorização cultural e melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, através da economia solidária.

 

Em 2016, a comunidade foi certificada pela Fundação Palmares como remanescente de quilombo, conforme publicação no Diário Oficial da Bahia. Ao todo, o município tem oito localidades já reconhecidas. Dentre elas, a Bananeira é a única situada na área urbana.

 

Na Chapada Norte, o Quilombo Erê atua em rede com outros grupos, fortalecendo o trabalho coletivo. Seu Delson destaca a parceria com a Associação Grota do Brito e o Timbó - comunidade do distrito de Itaitu, em Jacobina. “Esse povo é todo unido”, resume. Há ainda a participação em lutas do movimento negro unificado na capital baiana e apoio de grupos internacionais. Atualmente o Centro de Convivência desenvolve projetos de esporte, cultura e cursos profissionalizantes, como o de corte e costura. Também são ministradas oficinas de capoeira e aulas de dança, incluindo os ritmos samba, reggae e lambada.

A professora Edna explica que grande parte das ações da equipe resulta de projetos elaborados para concorrer a editais de chamada pública, sendo a maioria das atividades mediada por voluntários. “A Associação é sem fins lucrativos, trabalhamos por amor à cultura”, afirma. No último dia 20 de novembro, destinado à Consciência Negra, o grupo participou da sessão solene especial na Câmara de Vereadores. Um dos políticos, Jean Moreira - conhecido como Júnior -, é irmão de Edna e o primeiro vereador representante da luta quilombola no município. “Meu irmão conseguiu o título por meio dos movimentos sociais, das comunidades”, ressalta.

 

Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU) - Brasil, os negros, incluindo pardos e pretos, apesar de maioria em nosso país, são mais afetados pela desigualdade social: entre os 10% da população mais pobre, 76% são negros, enquanto, entre o 1% mais rico, apenas 17,4% fazem parte desse núcleo populacional. Quanto às taxas de homicídio, estão na frente, sendo mais suscetíveis à violência com arma de fogo. Nos índices de desemprego/informalidade, gravidez precoce e analfabetismo também lideram.

 
Edna - Por Josy Almeida

​Há alguns anos, Edna passa temporadas na Suécia, o mais populoso dos países nórdicos. Dentre as diferenças culturais entre brasileiras e suecas, ela destaca o preconceito com o seu jeito de se vestir. “Não vou mudar minha estética! Lá as mulheres não usam maquiagem, brincos, turbantes e roupas coloridas”, esclarece. Segundo Edna, naquela nação, muita cor é sinônimo de orientação homoafetiva. “Cheguei em 2013, na época de Brazilian Day. Um grupo de samba me convidou para se apresentar no carnaval e nos shows que reúnem pessoas da Espanha e do Brasil”, conta a professora, que também fez parte do coral em uma igreja católica, onde, aos poucos, conquistou reconhecimento com sua autenticidade e modo colaborativo de ser. “Passei a levar lanches para repartir no fim dos encontros, inseri canções de raiz africana e realizei oficina com idosas”, elenca.​

A Casa Rebeca: um lar de esperança

Josy e Pe. José - Por Taiane Santos

A preocupação com a vulnerabilidade social do público infanto-juvenil de Jacobina ocasionou a criação da Casa Rebeca, título que homenageia a menina de mesmo nome que morava na Serrinha e faleceu por desnutrição. Ao longo dos quase 20 anos de existência, o projeto social, chamado, inicialmente, de Pastoral do Menor, tem enfrentado desafios. Um deles é a dificuldade de manter financeiramente as ações desenvolvidas, que depende de doações e apoio de voluntários, a exemplo de Cléa Almeida, uma das suas principais idealizadoras. “A gente quer que o poder público assuma a Casa. Não pode ficar só na esmola!”, desabafa Pe. José.

Na opinião de Josimere Almeida, que hoje cursa educação física na Uneb e já foi estagiária do projeto durante três meses, a oportunidade foi essencial para experiências além da academia. “A Casa Rebeca despertou esse olhar mais humano, particular, no sentindo de a gente conseguir enxergar nas crianças um olhar de pedido, amor, carinho, cuidado. O estágio de intervenção não formal desperta na gente esse sentimento de solidariedade. Através da arte-educação conseguimos transmitir isso e receber delas também”, pontua.

Jaciana e Ayanne - Por Verusa Pinho

Para Jaciana Azevedo, mãe voluntária do projeto, é preciso que mais pessoas conheçam e participem da Casa, inclusive pais e responsáveis pelas crianças e adolescentes atendidos. “Se não tivesse a Casa Rebeca, os meninos iriam ficar na rua. No dia que não tem atividade no projeto, eles falam, acham muito ruim”, diz. Mãe da pequena Ayanne, 7, Jaciana compartilha os benefícios da iniciativa no aprendizado da filha: “Percebo que ela aprende mais aqui, a escola ensina, mas quando chega aqui tem outras atividades e eles aprendem mais. É um reforço”, fala também observada no depoimento da criança, que destaca as brincadeiras no Recanto [espaço anexo à Casa] e o ensino das contas como atrativos do projeto.

Segundo Marta Lúcia Carvalho, graduanda de história na Uneb e colaboradora do projeto há mais de um ano, linguagens como música, teatro, dança e artesanato são destaques nas atividades desenvolvidas, ao lado do reforço escolar, prezando pela formação para a cidadania. “Algumas crianças eram agressivas ou quietas demais, mas já notamos mudanças. Vemos avanços até na leitura e escrita. Muitos pais não sabem ajudar a fazer o dever de casa, não têm dinheiro para pagar bancas, então a gente faz o trabalho da escola com elas. Algumas professoras já elogiaram as tarefas das crianças da Casa Rebeca”, conta.

De acordo com Veralúcia Barbosa, diretora da Escola Municipal Prof. Carlos Gomes da Silva, tanto os participantes da Casa quanto da Fazendinha José Josivan de Jesus, projeto situado nos arredores do bairro (Boiadeiro), destacam-se nos trabalhos educativos. “Nesses espaços nossos alunos encontram socorro, abrigo, acolhimento e defesa”. Gisélia de Oliveira, vice-diretora da escola e profa. do fundamental (2º ano), acrescenta: “O percentual de alfabetização dos alunos frequentadores desses projetos é de cem por cento!”.

Gisélia - Por Josy Almeida

Para ela, a relação da escola com a Casa Rebeca é magnífica. “Nossa escola foi fundada em 2005. Desde a sua criação existe o projeto da consciência negra. Antes era dado o foco em novembro. Há uns três anos, percebemos a necessidade de trabalhar o tema o ano inteiro, porque a gente tem a maioria de alunos negros ou descendentes de negros, e a gente percebe a importância do assunto. Para os alunos atendidos pela Casa Rebeca, o assumir-se negro é muito maior. Eles têm orgulho de dizer que são negros e isso me deixa cheia de orgulho também. Então a gente percebe a importância do trabalho que é feito lá em consonância com que a gente faz aqui. Eu digo assim em todo lugar que vou: a Escola Carlos Gomes ficaria sem um pedaço importante se a gente perdesse o projeto!”, conta Gisélia.

Nas sábias palavras do Pe. José, serão os jovens responsáveis pela revolução! Em clima de esperança, finalizamos nossa reportagem com o hino entoado por diversos movimentos sociais, cantado, oportunamente, no fim entrevista com o pároco.

Pe. José - Por Igor Fagner

Jubileu da Terra (Roberto Malvezzi)

Refrão: Jubileu da Terra é repartir o pão, é pôr os pés na terra, é pôr as mãos no chão. É devolver a terra, que é de cada irmão, porque a terra é do Senhor.

Crianças na Casa Rebeca interagindo com Cléa e monitor em atividade recreativa - Por Josy Almeida

Nação dos Pataxós, Xukurus e Cariris, Tupis, Yanomamis, Hã-hã-hãs e Guaranis. Depois de tanto sangue, depois de tanta guerra, que a terra seja índia e que os índios tenham terra.

E aos remanescentes de negros quilombolas, enfim “Terra Brasilis” seja nossa, seja vossa. Depois de tanto sangue, depois de tanta guerra, que a terra seja negra e que os negros tenham terra.

Pequenos lavradores, posseiros e sem terra, enfim alcancem o sonho de justiça e paz na terra. Depois de tanto sangue, depois de tanta guerra, que a terra volte ao povo e que todos tenham terra.

 

EXTRA - Nosso colaborador italiano, Giampiero Valenza, elaborou um panorama da situação da criança e do adolescente em diversas parte do mundo, sobretudo, no Brasil e na Itália. Confira aqui!

 

AGRADECIMENTOS

Valter Oliveira (historiador)

24ª CIPM - Major Flaiton Frankles Oliveira e soldado Emílio Alves Júnior

Tod@s @s entrevistad@s, morador@s e admirador@s do bairro que colaboraram direta ou indiretamente com a produção da reportagem.

OBRAS CONSULTADAS

AMORIM, Eliã Siméia Martins dos Santos; COUTINHO, Rosilda Valois (orgs.). Quem inventou Jacobina? Iniciando a pesquisa na Escola Básica. Jacobina/BA: Rabisco, 2005.

LEMOS, Doracy Araújo. Jacobina, sua história e sua gente/memórias. Jacobina/BA: Gráfica e Indústria Gráfica e Editora Ltda, 1995.

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