Reportagem com representantes de organizações da sociedade civil regionais atuantes em várias frentes, dentre elas, meio ambiente, economia solidária e inclusão
A trajetória histórica dos movimentos sociais no Brasil se confunde com a constituição da própria democracia em nosso país. Ao longo do tempo, as principais conquistas sociais dependeram, em grande parte, da organização e mobilização da sociedade civil, fonte de lutas e manifestações constantes, na busca, promoção e defesa de direitos negados ou não disponibilizados pelo Estado.
Formada por entidades privadas sem fins lucrativos que desenvolvem ações de interesse público, essa “outra sociedade” atua em inúmeras frentes, dentre elas, saúde, educação, cultura e moradia. Num contexto de carências e exclusão, tais grupos se tornam potencializadores de novas maneiras de se fazer política, contribuindo para o exercício da cidadania e a melhoria da qualidade de vida em suas comunidades.
“Ter uma sociedade civil atuante é condição essencial para enfrentar os desafios sociais, culturais e ambientais da atualidade.” Fonte: www.sociedadecivil2023.org.br
Diariamente, vivenciamos ações de altruísmo, em prol de uma sociedade mais justa e digna. É nesse campo que se destacam as organizações da sociedade civil (OSCs), sobretudo, no cenário político atual, cercado por escândalos de corrupção, perda de conquistas, polaridades... Em meio a incertezas, assistimos à queda da autoestima e questionamos: onde está a típica alegria e criatividade do povo brasileiro? Mas, como dizem os filósofos, os momentos de crise são desafiadores e molas propulsoras para grandes mudanças.
A fim de superar essa suposta passividade, quase 400 mil OSCs desenvolvem projetos por todo o país, conforme dados do Mapa das Organizações da Sociedade Civil, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Na região de Jacobina, Piemonte da Chapada Diamantina, no estado da Bahia, diversos são os exemplos de iniciativas realizadas por associações, cooperativas e grupos não formalizados em torno de interesses coletivos. A Associação de Ação Social e Preservação das Águas, Fauna e Flora da Chapada Norte (ASPAFF) é uma delas.
Perfil
Com quase dez anos de existência, a ASPAFF Chapada Norte tem ampliado sua atuação por meio da representação em espaços públicos e proposição de ações através de editais. A Associação está:
Nos Comitês das Bacias Hidrográficas do Itapicuru e Salitre;
No Fórum Baiano de Comitês de Bacias Hidrográficas;
No Conselho de Defesa do Meio Ambiente de Jacobina (Condema).
Possui: Títulos de Utilidade Pública Municipal e Estadual;
Realiza: Brigada de Incêndio e o Cineclube Payayá;
Já realizou: Em parceria com a associada Inaiara Nunes, proponente do projeto O Estético e O Lúdico na Literatura Infanto-Juvenil, oficinas de incentivo à leitura, entre 2011 e 2013, em Itaitu e Cachoeira Grande; o Ponto de Leitura Balaio Cultural: Feira de Arte, Cultura e Meio Ambiente de Itaitu, edital que disponibilizou recursos para implantação da Casa de Arte e Cultura de Itaitu, com as respectivas salas Cineclube Itaitu e Ecobrinquedoteca, inauguradas em 2012; Projetos Céu das Artes e Feira de Tradições Culturais (Fetrac). Atualmente está responsável pelo Ponto de Cultura EcoArte Itaitu, um desdobramento do Balaio Cultural, com sua 1ª edição em 2017, e ações continuadas por três anos, incluindo oficinas de culinária, gestão interna de OSCs e artesanato.
Nas palavras de Richard Silva, presidente da ASPAFF, a 1ª edição do Festival foi um sucesso, principalmente pela participação dos expositores de artesanatos vindos de Jacobina e de outras localidades, a exemplo de Senhor do Bonfim, Morro do Chapéu e Capim Grosso. “Destacou-se a presença das mulheres expositoras, fortalecendo o evento e trabalhando pela economia criativa* através da força feminina”, destaca.
*É um tipo de economia que está diretamente relacionada ao desenvolvimento sustentável local. Nesse modo de organização, os processos são participativos e dinâmicos, fazendo com que os envolvidos sejam protagonistas da própria história, propondo e construindo melhores formas de sobrevivência socialmente justas e ecologicamente corretas. Isso implica, dentre outros fatores, no fortalecimento dos saberes tradicionais, na gestão coletiva e divisão de recursos, bem como no respeito aos princípios agroecológicos, que prezam pelo menor impacto na natureza, tratamento adequado de resíduos e pela manutenção da vida, em sua diversidade.
A questão do campo
Bate-papo com Taiane Santos
Vice-Presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Saracura/Serrolândia, existente desde 1995, a jovem Taiane, 21, revela seu apreço pelas conquistas alcançadas ao longo dos anos. Graduanda do curso de letras na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), em Jacobina, e de administração (Uniasselvi), ela relembra sua caminhada enquanto agricultora, mulher e negra. Caçula entre quatro irmãos, Taiane já participou de várias formações, tanto no âmbito da liderança juvenil, quanto no aspecto ambiental (viveirista de plantas e flores), prestando, ainda, apoio a projetos sociais como voluntária.
“Lutamos por causas sociais! Em 2006, conseguimos água encanada na comunidade; Em 2011, energia para todos, reabertura de escolas, e, em 2015, a sede da associação, bem como a construção de aproximadamente 50 cisternas para captação de água, além de cursos e capacitações profissionalizantes através de parcerias”, descreve. Quanto aos desafios para a entidade que representa, a burocracia na formalização e regularização é mencionada como o “calcanhar de Aquiles”, ao lado do falho diálogo entre poder público/sociedade civil, dificuldade de participação ativa dos moradores e falta de associativismo de muitos.
“Infelizmente ainda há um pensamento individualista. Sabemos que é preciso muito trabalho voluntário e pessoas realmente dispostas a contribuir, pois é necessário ir em busca das informações, já que elas tendem a demorar para chegar no campo. Um dos maiores desafios que eu considero é a precariedade de informações e de projetos que façam o(a) agricultor(a) cultivar e permanecer nas suas terras. O trabalho coletivo só funciona quando temos pessoas conscientes sobre a importância do ser agricultor(a)”, revela.
Marco Regulatório
A Lei nº 13.019/2014 instituiu normas gerais para as parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, mediante a execução de atividades ou projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, fomento ou em acordos de cooperação. Contribuir com a transparência na prestação de contas dessas entidades, a fim de evitar fraudes por desvio/má gestão, é um dos objetivos da referida legislação, mas devido aos variados problemas, alguns elencados acima na fala de Taiane, a legislação também pode representar mais uma barreira na manutenção das equipes de trabalho, já que tais grupos nem sempre têm acesso à formação prévia para apropriação das exigências relacionadas, sobretudo, à documentação, imprescindível para a captação os recursos. Especialistas e associados/cooperados também denunciam a falta de participação na elaboração da lei, que teve forte pressão dos órgãos fiscalizadores.
Para Luna Layse da Silva, comunicadora popular da Cooperativa de Trabalho e Assistência à Agricultura Familiar Sustentável do Piemonte (Cofaspi), a comunicação é direito primordial para que as pessoas sejam ouvidas e se integrem nos processos de gestão, produzindo conteúdos a partir de um olhar contra-hegemônico, que contribua para a mobilização social, busca por direitos e políticas públicas. “Eu penso que os desafios são diversos e constantes, principalmente quando a gente entende que a comunicação popular e alternativa tem um papel fundamental na busca da participação de todas e todos, tanto para produzir quanto pra gerir conteúdos das mídias, rompendo assim com esse processo de dominação. A gente sabe que o controle de muitas mídias ainda está nas mãos de poucas famílias, então a comunicação popular e alternativa vem na contramão desse processo, numa luta constante pela democratização do acesso aos meios de comunicação. Um dos desafios é a conscientização”, aponta.
Na opinião de Robson Aglayton, gestor ambiental, diretor administrativo e coordenador de projetos na Cofaspi, o novo marco regulatório vem contribuir para a legalidade dos convênios entre poder público e OSCs. “As associações agora podem construir juntamente com o governo as políticas públicas a partir das suas demandas. Outra coisa que a lei traz é esclarecer um pouco onde é que as organizações têm atuado como maior efetividade, como é que se dá a participação. Do ponto de vista do incidente dos ciclos das políticas públicas, as organizações da sociedade civil têm assumido diferentes papéis. Sua presença pode ser observada desde a etapa de formulação da política, por meio da participação em conselhos, comissões, comitês e conferências ao compartilhamento de experiências de tecnologias sociais inovadoras”, esclarece. Quanto aos empecilhos enfrentados enquanto integrante de cooperativa, ele cita a falta de participação da sociedade. “Algumas pessoas acabam carregando os grupos nas costas. É o que acontece com boa parte da população, que fica assim, esperando as coisas acontecerem, enquanto outras, principalmente as lideranças, é quem correm atrás de resolver todas as questões. A população ainda precisa se dar conta da importância de participação dentro das OSCs”.
Nas palavras de Evanice Lopes, extensionista social e funcionária aposentada da Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA), apesar de muito burocrático, o marco regulatório norteia pontos que estavam obscuros, como os registros legais das OSCs enquanto pessoas jurídicas e a lisura na prestação de contas, fortalecendo o papel das assembleias gerais, sobretudo, na aprovação da contabilidade. “Agora é preciso que as associações conheçam a lei e promovam a sua reforma estatutária”, recomenda.
Desenvolvimento Territorial
Composto por instituições do poder público e da sociedade civil de diferentes seguimentos, o Colegiado de Desenvolvimento Territorial do Piemonte da Diamantina (Codeter) é um espaço de colaboração que promove ações de planejamento, integração, articulação e encaminhamento de proposições nos nove municípios que o compõem: Caém, Jacobina, Miguel Calmon, Mirangaba, Ourolândia, Saúde, Serrolândia, Umburanas e Várzea Nova. “Formamos um coletivo”, diz Inaiara Nunes, que faz parte do núcleo diretivo do Colegiado e da ASPAFF Chapada Norte. Atuando por meio de câmaras temáticas, o Codeter contempla ações no âmbito de comunidades tradicionais, cultura, desenvolvimento rural e economia solidária, educação, juventude, meio ambiente e turismo, mulheres, saúde e segurança.
Acessibilidade & Inclusão
Sob o olhar de Silvio Pereira e Anne Bacelar
Presidente do Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência e ex-presidente da Associação da Pessoa com Deficiência de Jacobina (APCD), Silvio Pereira, 36, é um profundo defensor dos direitos humanos e dos animais. Cadeirante, é graduando de história (Uneb) e botafoguense fervoroso. Ao traçar um panorama das duas organizações, ele cita os dez anos de criação da APCD no contraponto com a ausência de sede própria. “Enquanto a Associação é uma entidade puramente de pessoas da sociedade civil, sem nenhum vínculo com partidos, o Conselho tem uma junção com o poder público, de acordo com percentual de paridade”, explica.
Dentre os avanços mais recentes, Silvio cita a realização de eventos, como a Conferência da Pessoa com Deficiência, o Desconstruindo Mitos, Arraiá Inclusivo e Sentindo na Pele; intervenções em escolas públicas, privadas e nas ruas da cidade; relatórios e projetos de acessibilidade, além do recebimento de próteses e órteses através de parcerias com empresários locais. “Acho que o principal benefício que nós trouxemos pra sociedade de Jacobina é que a pessoa com deficiência, de alguma forma, tem uma representatividade, por mais que não seja a ideal. Estamos ocupando um espaço! Precisamos muito avançar nessas questões de politicas públicas e lutar por nossos direitos. Acho que temos muito mais a fazer e a crescer do que aplaudir. Temos um respaldo hoje e estamos chamando a atenção, plantando uma sementinha para que as coisas melhorem a cada dia”, sinaliza.
Segundo Anne Bacelar, 40, estudante de jornalismo, espiritualista e graduada em artes marciais, mãe de dois meninos e admiradora das curas holísticas, cultura, desporto e diversidade, inclusão deve ser entendida de maneira ampla, como benefício para todos e não somente para os deficientes. “Uma grávida precisa de calçadas seguras tanto quanto nós, assim como uma mãe com um carrinho de bebê ou um idoso com carrinho de feira precisam de boas rampas. Enfim, a acessibilidade é uma necessidade de todos!”.
Cobaia de um hospital-escola, Anne sobreviveu a um câncer ósseo, que a deixou com deficiência físico-motora aos 26 anos de idade. Membro atuante e ex-tesoureira da APCD, ela fala da experiência e das percepções que adquiriu no mundo da inclusão. “Nós temos limitações e queremos que respeitem isso. Mas não queremos ser tratados como incapazes, isso afeta a nossa dignidade. Percebo a diferença de como as pessoas nos olham e nos tratam, demonstrando receio e uma certa falta de trato, mesmo querendo ajudar... Chega a ser constrangedor! O que as pessoas têm que lembrar é que convivemos e aprendemos com nossas limitações todos os dias, aprendemos a nos superar o tempo todo”, desabafa.
Para Anne, a sociedade civil está em todo lugar: “Somos todos nós como cidadãos, articulando leis, levando a democracia da maneira mais séria pra fazer valer o que nos é de direito. Não basta estar cansado, vamos arregaçar as mangas, nos unir, acabar com tudo que nos indigna e envergonha! Em cada grupo há uma causa que cada um busca e em cada busca há uma força que traz a transformação social, seja na comunidade, na sala de aula, na igreja ou no bar da esquina, não tem classe social, idade ou distinção. Basta um interesse em comum e união, porque unidos somos fortes!”, convoca.
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